Colóquio - Instituto de História Contemporânea
As figuras do poder tenderam a ser identificadas por historiadores com os poucos homens e menos mulheres que ao longo dos tempos protagonizaram o governo dos Estados. As biografias de grandes dirigentes e as prosopografias das elites políticas têm-se multiplicado nas bibliotecas académicas e nos escaparates das livrarias. Contra esta história dos grandes líderes, fizeram-se ouvir, todavia, críticas historiográficas que têm contribuído para uma possível redefinição do entendimento e estudo das relações de poder ao longo da história.
Esta redefinição do estudo do poder tem tomado duas grandes vias.
Numa delas, a problemática do poder é levada além da sua dimensão política. Críticas à história política évènementielle, provenientes, entre outros, dos primeiros Annales ou da tradição marxista, alargaram e recentraram o estudo das relações de poder, deslocando-as dos agentes e instituições da elite política para as esferas económica e social. Com efeitos semelhantes, a “viragem cultural”, de que a Nova História Cultural foi a expressão historiográfica, contribuiu para o alargamento substancial dos lugares e agentes de poder ao campo cultural. Além da esfera política, a fábrica, o escritório, o lar ou a igreja passaram a ser também considerados como lugares de poder.
Numa outra via, o alargamento do universo dos objectos susceptíveis de integrar uma história do poder levou a uma reconceptualização da própria ideia de política. Neste âmbito, são conhecidas propostas de extensão da esfera do político a contextos não-elitistas e extra-europeus que foram elaboradas pela história social, pelos estudos sobre movimentos sociais ou ainda, mais especificamente, por grupos como o dos estudos subalternos. São também conhecidas, ainda, as interrogações sobre a efectividade dos poderes políticos centralizados, que, fazendo redobrar a atenção em torno da territorialidade e escala dos processos históricos, reconheceram novas margens de autonomia a poderes tidos como periféricos. Finalmente, no quadro de uma redefinição das formas de estudar o político, podemos ainda assinalar, entre outros desenvolvimentos historiográficos aqui não mencionados, os contributos afins ao programa foucaultiano de elaboração de uma genealogia do poder. Destes contributos emergiu nos últimos anos uma área de trabalho frequentemente designada como os estudos da governamentalidade, cujo ponto de vista tem procurado submeter as instituições modernas como o Estado a uma leitura baseada numa concepção relacional do poder, em que este é exercido menos sobre e mais com o que procura dominar, apontando, a um só tempo, às complexas articulações entre os poderes de repressão e de “condução de condutas” e, reversamente, o poder de resistência a ser governado.
Atendendo aos desenvolvimentos historiográficos expostos, por vezes contraditórios e os quais, é sabido, não deixaram de suscitar inúmeras controvérsias, o presente call for papers convida à apresentação de comunicações em torno da História de Portugal no período contemporâneo que contribuam para a reflexão historiográfica em torno do poder. Aceitam-se propostas que procurem o desenvolvimento de uma história dos governantes atida à linhagem de reis, primeiros-ministros e presidentes da república, mas apela-se com particular ênfase à apresentação de propostas que contribuam para uma história das artes de governar que deverá sempre igualmente interrogar as esferas do económico, do social e do cultural; e promover leituras que, da história de funcionamento do Estado ao estudo de locais de trabalho, passando pela análise de sociabilidades familiares ou outras, atravessem as segmentações convencionais que qualificam objectos historiográficos como propriedade da História Política, da História Económica, da História Social ou da História Cultural.
Serão privilegiadas as comunicações que se dirijam ao estudo de figuras que corporizem as relações de poder. A título de exemplo, inventariamos algumas figuras susceptíveis de serem concebidas como objecto de investigação historiográfica a apresentar ao seminário: assistente social, banqueiro, bastonário, capataz, chefe de cozinha, chefe de família, chefe de redacção, chefe de repartição, cobrador de impostos, colonizador, colono, curador, director de biblioteca, director de jornal, dirigente associativo, editor, engenheiro, gestor, governanta, guarda prisional, guarda-fiscal, intelectual, juiz, mãe, maestro, médico, nadador-salvador, padre, patrão, perito, polícia, populista, Presidente da Junta, Presidente de clube, professor, programador cultural, proprietário, psiquiatra, realizador, treinador, reitor. As comunicações podem incidir sobre casos específicos ou proceder a uma análise geral; por exemplo, podem ter como tema “Chefe de Guerrilha” ou “Remexido”; “Banqueiros” ou “Dona Branca”; “Dirigente da Oposição” ou “Álvaro Cunhal”; “Colono” ou “Colonos em Moçambique”; “Realizador de Cinema” ou “Leitão de Barros”; “Professor” ou “José Hermano Saraiva”; etc. Deve ainda ser referido que se aceitam também, na senda de um governo de si, comunicações em torno de objectos como “cidadão”, “aluno”, “anarquista”, entre outras hipóteses. Podemos desde já anunciar, também, os títulos provisórios das comunicações dos conferencistas convidados: “Poderes da insubmissão: revoltosos, guerrilheiros e bandidos” (por Fátima Sá), “Tecnologias de governo do aluno na modernidade” (por Jorge Ramos do Ó), “Agentes da Governação: os médicos de partido e os delegados de saúde, 1890-1940” (por Rita Garnel) e “O poder, o político, a política” (por Robert Rowland).
A arte de governar
Novas perspectivas sobre o poder no Portugal Contemporâneo